Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
“Intertexto” de Friedrich Nietzsche (1844-1900) –
filósofo alemão
A religião de matriz africana estruturada no Rio Grande do Sul pelos
negros africanos escravizados é chamada de Batuque. Historicamente esta
religião tem origem nos cultos africanos aos Orixás, Voduns e Inkices,
divindades criadas por Deus para vivificar a natureza, os animais e os seres
humanos. Devido ao processo econômico instituído nas Américas, formou-se um
tráfico transatlântico de seres humanos que, tirados de suas terras natais, foram
escravizados majoritariamente no Brasil, nas Antilhas e nos Estados Unidos.
O Batuque (RS, SC, PR, Uruguai e Argentina), o Candomblé
(BA, RJ, SP), o Tambor de Mina (MA, PA, AM), o Xangô e o Xambá
(PE, PB, SE, AL), além da Santería (Cuba, EUA) e o Vodu (Haiti,
República Dominicana) são religiões de matriz africana, ou seja, religiões
estruturadas nas Américas a partir da religião tradicional africana. Essas
estruturações se deram por meio de adaptações, agregações e supressões de
elementos originais africanos para a realidade disponível ao negro que vivia
sem liberdade física, nem de expressão. Além destas, ainda há as religiões com
influência africana como a Umbanda, Quimbanda, Catimbó, Omolocô, etc.
O Batuque surge nas senzalas e, com a abolição da escravatura, se expande
para todo o estado, para outros estados do Sul do país e também para o Uruguai
e Argentina. Extrapola classes sociais, níveis sócio-educativos e grupos
étnicos.
Apesar disso tem sido alvo de um ataque que se arrasta historicamente
proveniente da sociedade como um todo, cuja ótica ainda está arraigada ao
ideário do Brasil Colônia, Império, República Velha, Estado Novo, Ditadura
Militar e que, a despeito da democratização política, continua vigente na
atualidade de forma quase inalterada. Nem mesmo as políticas de reconhecimento
levadas a efeito pelas atuais ações afirmativas tiraram do lugar marginal a que
estão relegadas conjuntamente com seus fiéis. Assim a sociedade abrangente
mantém seus estigmas, estereótipos, preconceitos e discriminações para com as
Religiões Afro-brasileiras.
Uma das funções da cultura, segundo Bauman[1],
é ser um constructo ideológico, uma forma de por ordem à existência em
sociedade, regular nossos comportamentos e percepções do mundo que nos rodeia.
A cultura estrutura nosso mundo, constrói paradigmas, axiomas, determina o que
é bom e o que é mal, fundamenta nosso viver.
A cultura brasileira se diz miscigenada e com isso tenta nos convencer de
que a diversidade é respeitada. Mas como o historiador Joel Rufino dos Santos[2]
nos deixa claro, esse “respeito” se desmaterializa em momentos de conflito. O
diferente só é respeitado desde que não invada aquilo que culturalmente
dispusemos como nosso. Neste ínterim se naturalizam o machismo, o racismo, a
homofobia e a Afrotheofobia.
Termo cunhado pelo Teólogo Afro Jayro Pereira, Afrotheofobia se
refere ao medo que temos das religiões de matriz africana e afro-brasileiras.
Medo este que nos foi plantando em nosso cérebro por essa cultura eurocêntrica;
medo que nos torna discriminatórios, preconceituosos; medo que nos faz
perseguir e ferir de todas as formas; medo que nos instiga a destruir, cometer
violências de todo o tipo. Não gostamos de sentir medo, por isso atacamos o que
nos faz temer.
Suas origens estão na própria cultura brasileira que é
“cristianocentrada”, ou seja, possui uma base civilizatória em elementos
religiosos cristãos que serviram de pressupostos que construíram a cultura da
civilização americana, sobretudo no Brasil.
Podemos perceber as nuances que a afrotheofobia tomou de acordo com o
período histórico em que foi empregada. Uma das justificativas para a
escravidão dos africanos na virada da Idade Média para a Moderna foi a alegação
de que suas práticas religiosas eram na verdade satânicas. Esse discurso prevaleceu
por quatro séculos, até a proclamação da República, quando lhes são atribuídos
problemas psicopatológicos. Com a Revolução de 1930 e a instituição do Estado
Novo, o Código Penal Brasileiro arrola as práticas religiosas africanas como
crime de charlatanismo e curandeirismo.
Os ataques oriundos de autores católicos, sobretudo padres, bispos e
arcebispos seguem essa linha ideológica. Somente após o Concílio Vaticano II
(1965) que a Igreja Católica deixa de perseguir os afro-religiosos, ao menos
oficialmente, mas não sem antes ter deixado um rastro de destruição semântica e
simbólica.
Se do cristianismo ganhamos a alcunha de “adoradores do diabo”, pelos
cientistas fomos sentenciados como “primitivos, selvagens, ignorantes,
involuídos e detentores de uma psicopatologia”.
Isso só mudou um pouco graças a novas formas de se perceber as culturas
tirando-as desse lugar “evolutivo” que serve apenas para beneficiar e
justificar as ações de um grupo humano sobre outros, para o lugar concreto
dessas culturas de acordo com seu processo histórico natural.
Mas no final da década de 1970 surgem as Igrejas Neopentecostais cuja
teologia está arraigada no tripé prosperidade, cura e exorcismo. Como está
arraigada na sociedade brasileira a associação das religiões afro com o mal, e
sendo o mal oriundo do próprio Satanás, essas igrejas relacionaram todos os
males de seus fiéis a algum tipo de envolvimento com as religiões afro, mesmo
que de terceiros. Com isso o recrudescimento da intolerância religiosa aos
Cultos Afros potencializaram-se. Nessa direção o imaginário da população é
trabalhado para recobrar ou reavivar o sentimento de afrotheofobia pelos
meios de comunicação de que dispõem essas igrejas. As perpetradoras da
intolerância religiosa que cada vez mais sofistica o seu proselitismo
beligerante, ao tempo que cede às violências físicas aos adeptos afros que as
sofriam em logradouros públicos. Ataca agora de forma semiológica e
semanticamente com requintes de perversidade.
Importa refletir que essa teologia afro do mal são introjetadas na
população de forma extensiva e ininterrupta, construindo sujeitos intolerantes
e, recentemente, agressivos. O fenômeno instaura sentimento de impotência,
vergonha e, por conseguinte, auto-invisibilidade nos adeptos que se esquivam de
toda e qualquer manifestação ou autodeclaração de notoriedade sobretudo
pública.
Portanto é mister que – para que o nosso país se torne efetivamente um
país de todos; para que haja respeito mútuo e que haja uma sociedade mais digna
e democrática tanto ética quanto moralmente – se faz necessário uma educação
onde o povo se aproprie conceitualmente do que são as religiões de matriz
africana, desconstruindo esse paradigma do mal fundado em ideologias
excludentes e xenófobas para que possamos, assim, lograr a paz social e cidadã.
Púpọ̀ Àṣẹ Gbogbo!
Comissão Organizadora da V Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa
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