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17 de jan. de 2013

MANIFESTO DOS AFRO-RELIGIOSOS CONTRA A AFROTHEOFOBIA



                                                                                                                     Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

“Intertexto” de Friedrich Nietzsche (1844-1900) – filósofo alemão

A religião de matriz africana estruturada no Rio Grande do Sul pelos negros africanos escravizados é chamada de Batuque. Historicamente esta religião tem origem nos cultos africanos aos Orixás, Voduns e Inkices, divindades criadas por Deus para vivificar a natureza, os animais e os seres humanos. Devido ao processo econômico instituído nas Américas, formou-se um tráfico transatlântico de seres humanos que, tirados de suas terras natais, foram escravizados majoritariamente no Brasil, nas Antilhas e nos Estados Unidos.
O Batuque (RS, SC, PR, Uruguai e Argentina), o Candomblé (BA, RJ, SP), o Tambor de Mina (MA, PA, AM), o Xangô e o Xambá (PE, PB, SE, AL), além da Santería (Cuba, EUA) e o Vodu (Haiti, República Dominicana) são religiões de matriz africana, ou seja, religiões estruturadas nas Américas a partir da religião tradicional africana. Essas estruturações se deram por meio de adaptações, agregações e supressões de elementos originais africanos para a realidade disponível ao negro que vivia sem liberdade física, nem de expressão. Além destas, ainda há as religiões com influência africana como a Umbanda, Quimbanda, Catimbó, Omolocô, etc.
O Batuque surge nas senzalas e, com a abolição da escravatura, se expande para todo o estado, para outros estados do Sul do país e também para o Uruguai e Argentina. Extrapola classes sociais, níveis sócio-educativos e grupos étnicos.
Apesar disso tem sido alvo de um ataque que se arrasta historicamente proveniente da sociedade como um todo, cuja ótica ainda está arraigada ao ideário do Brasil Colônia, Império, República Velha, Estado Novo, Ditadura Militar e que, a despeito da democratização política, continua vigente na atualidade de forma quase inalterada. Nem mesmo as políticas de reconhecimento levadas a efeito pelas atuais ações afirmativas tiraram do lugar marginal a que estão relegadas conjuntamente com seus fiéis. Assim a sociedade abrangente mantém seus estigmas, estereótipos, preconceitos e discriminações para com as Religiões Afro-brasileiras.
Uma das funções da cultura, segundo Bauman[1], é ser um constructo ideológico, uma forma de por ordem à existência em sociedade, regular nossos comportamentos e percepções do mundo que nos rodeia. A cultura estrutura nosso mundo, constrói paradigmas, axiomas, determina o que é bom e o que é mal, fundamenta nosso viver.
A cultura brasileira se diz miscigenada e com isso tenta nos convencer de que a diversidade é respeitada. Mas como o historiador Joel Rufino dos Santos[2] nos deixa claro, esse “respeito” se desmaterializa em momentos de conflito. O diferente só é respeitado desde que não invada aquilo que culturalmente dispusemos como nosso. Neste ínterim se naturalizam o machismo, o racismo, a homofobia e a Afrotheofobia.
Termo cunhado pelo Teólogo Afro Jayro Pereira, Afrotheofobia se refere ao medo que temos das religiões de matriz africana e afro-brasileiras. Medo este que nos foi plantando em nosso cérebro por essa cultura eurocêntrica; medo que nos torna discriminatórios, preconceituosos; medo que nos faz perseguir e ferir de todas as formas; medo que nos instiga a destruir, cometer violências de todo o tipo. Não gostamos de sentir medo, por isso atacamos o que nos faz temer.
Suas origens estão na própria cultura brasileira que é “cristianocentrada”, ou seja, possui uma base civilizatória em elementos religiosos cristãos que serviram de pressupostos que construíram a cultura da civilização americana, sobretudo no Brasil.
Podemos perceber as nuances que a afrotheofobia tomou de acordo com o período histórico em que foi empregada. Uma das justificativas para a escravidão dos africanos na virada da Idade Média para a Moderna foi a alegação de que suas práticas religiosas eram na verdade satânicas. Esse discurso prevaleceu por quatro séculos, até a proclamação da República, quando lhes são atribuídos problemas psicopatológicos. Com a Revolução de 1930 e a instituição do Estado Novo, o Código Penal Brasileiro arrola as práticas religiosas africanas como crime de charlatanismo e curandeirismo.
Os ataques oriundos de autores católicos, sobretudo padres, bispos e arcebispos seguem essa linha ideológica. Somente após o Concílio Vaticano II (1965) que a Igreja Católica deixa de perseguir os afro-religiosos, ao menos oficialmente, mas não sem antes ter deixado um rastro de destruição semântica e simbólica.
Se do cristianismo ganhamos a alcunha de “adoradores do diabo”, pelos cientistas fomos sentenciados como “primitivos, selvagens, ignorantes, involuídos e detentores de uma psicopatologia”.  Isso só mudou um pouco graças a novas formas de se perceber as culturas tirando-as desse lugar “evolutivo” que serve apenas para beneficiar e justificar as ações de um grupo humano sobre outros, para o lugar concreto dessas culturas de acordo com seu processo histórico natural.
Mas no final da década de 1970 surgem as Igrejas Neopentecostais cuja teologia está arraigada no tripé prosperidade, cura e exorcismo. Como está arraigada na sociedade brasileira a associação das religiões afro com o mal, e sendo o mal oriundo do próprio Satanás, essas igrejas relacionaram todos os males de seus fiéis a algum tipo de envolvimento com as religiões afro, mesmo que de terceiros. Com isso o recrudescimento da intolerância religiosa aos Cultos Afros potencializaram-se. Nessa direção o imaginário da população é trabalhado para recobrar ou reavivar o sentimento de afrotheofobia pelos meios de comunicação de que dispõem essas igrejas. As perpetradoras da intolerância religiosa que cada vez mais sofistica o seu proselitismo beligerante, ao tempo que cede às violências físicas aos adeptos afros que as sofriam em logradouros públicos. Ataca agora de forma semiológica e semanticamente com requintes de perversidade.
Importa refletir que essa teologia afro do mal são introjetadas na população de forma extensiva e ininterrupta, construindo sujeitos intolerantes e, recentemente, agressivos. O fenômeno instaura sentimento de impotência, vergonha e, por conseguinte, auto-invisibilidade nos adeptos que se esquivam de toda e qualquer manifestação ou autodeclaração de notoriedade sobretudo pública.
Portanto é mister que – para que o nosso país se torne efetivamente um país de todos; para que haja respeito mútuo e que haja uma sociedade mais digna e democrática tanto ética quanto moralmente – se faz necessário uma educação onde o povo se aproprie conceitualmente do que são as religiões de matriz africana, desconstruindo esse paradigma do mal fundado em ideologias excludentes e xenófobas para que possamos, assim, lograr a paz social e cidadã.

Púpọ̀ Àṣẹ Gbogbo!

Comissão Organizadora da V Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa


Bibliografia utilizada
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2012. 325 p.
CÓDIGO PENAL de 1824/1890/191/1934/1940. Disponível em< http://www.profpito.com/dirconst.html> acesso em 01/06/2012.
CUPERTINO, Fausto. As muitas religiões do brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. 143p.
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. Ancestrais: uma introdução à história da África atlântica. Elsevier: Rio de Janeiro, 2004.
IANNI, Octavio. Escravidão e racismo. Hucitec: São Paulo, 1978.
ISAIA, Artur César. Hierarquia católica e religiões mediúnicas no Brasil da primeira metade do século XX. In: Revista de Ciências humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.30, p.67-80, outubro de 2001.
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JESUS, Jayro Pereira de. Manifesto do Ẹgbẹ́/RS pelo respeito às religiões de matriz africana. Disponível em <http://egbeorunaiye.blogspot.com.br/2009/10/manifesto-do-egbers-pelo-respeito-as.html>. Acesso em 08/01/2013.
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. Ática: São Paulo, 1989. 84 p.
MOURA, Tatiana Pintos. As relações entre o Estado e as religiões afro-brasileiras durante a ditadura militar (1964-1985). In: Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005. Disponível em:<http://www.fapa.com.br/monographia>
ORTIZ, Renato. A morte Branca do Feiticeiro Negro. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
ORO, Ari Pedro. Considerações sobre a liberdade religiosa no Brasil. In: Ciências & Letras, Porto Alegre, n.37, p. 433-448, jan./jun. 2005.
____; BEM, Daniel F. de. A discriminação contra as religiões afro-brasileiras: ontem e hoje. In: Ciências & Letras, Porto Alegre, n.44, p. 301-318, jul./dez 2008.
POLIAKOV, Léon. O mito ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos. São Paulo: Perspectiva, 1974. 329 p.
SÁ JUNIOR, Mário Teixeira de. Fé cega justiça amolada: os discursos de controle sobre as práticas religiosas afro-brasileiras na república (1889/1950). In: Revista brasileira de história das religiões. ANPUH, Ano III, n. 9, Jan. 2011. p. 41-74. Disponível em <http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pd f8/03.pdf>. Acesso em 08/01/2013.
SILVEIRA, Hendrix. Afrotheofobia: demonização e perseguição às religiões de matriz africana. No prelo.
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo.  São Paulo: Brasiliense, 1982.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.


[1]     BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 155-215.
[2]     SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo.  São Paulo: Brasiliense, 1982.